Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Seu próximo livro, Crônicas da Mata (título em construção), vai ser publicado em breve pela editora Aboio.
— Assassino! — sussurro para baixo da cama.
Lá, bem no fundo, atrás das malas, entre bolas de cabelo e poeira – e agora também entre pequenas penas cinza – lá onde a vassoura mal chega, Salém se entrincheirou com sua presa, enquanto acima dele, no colchão macio e com a máscara protegendo os olhos da luz da manhã, Larissa continua dormindo. Por isso estou falando baixinho.
— Seu psicopata-pervertido-sem-alma!
Óbvio que Salém pouco se importa com meus xingamentos sussurrados e continua cutucando sua vítima com o focinho, pegando-a na boca só para logo em seguida soltá-la novamente, jogando-a para cima e deixando-a cair. Com o bumbum levantado, o rabo serpenteando de um lado a outro e os olhos arregalados, se delicia com a agonia da pobre criatura em penas, com o poder sobre a vida e a morte. Está ronronando tão forte que a qualquer momento pode acordar a Larissa. Nesse momento, ele dá uma patada mais forte que faz o corpinho teso rodopiar sobre o chão até sair ao pé da cama. Só assim, à luz do sol, vejo de quem se trata. No susto me esqueço de qualquer consideração com minha bela adormecida:
— Ah, não, Salém! Logo ela? Como é que pode?
Larissa senta na cama de um golpe, ao mesmo tempo em que tira a máscara dos olhos:
— O que que foi?
— Salém matou Bárbara Schneider.
— O quê? Não acredito! Cadê você, seu assassino-psicopata-pervertido-sem-alma?
Cuidadosamente recolhemos o corpo sem vida do chão e o enterramos no jardim. Bem embaixo da pitangueira, entre cujos galhos, bem encaixadinho, estava seu ninho.
— O que será dos ovinhos? — Larissa enxuga uma lágrima.
— Olha, não sei aqui, mas lá na Alemanha os pais respondem pelos filhos…
— Verdade… Não tem outro jeito.
— Vamos nos revezar: duas horas eu, duas você.
Por isso, ao mesmo tempo em que escrevo este último adeus a Bárbara Schneider, estou chocando seus três ovinhos entre as coxas, enquanto Larissa está cuidando da criação de minhocas na composteira. É o mínimo que a gente pode fazer. Descanse em paz e não se preocupe, Dona Bárbara. Vai dar certo.